A molecada da rua inteira _ e das outras ruas _ resolvia empinar pipa bem na minha porta. A linha vivia enroscando na minha antena, as pipas caíam no quintal e, além de ter de interromper o trabalho a toda hora, havia um barulho infernal na calçada. Cheguei a um ponto tal de irritação que torcia para eles perderem as pipas. Mas eles apareciam minutos depois com outra pipa comprada na esquina por cinquenta centavos. Era uma das coisas que mais me deixavam inconformada.
Por que as criaturas faziam tanto estardalhaço, subiam em muros e lajes, arriscando o pescoço, com o perigo de serem eletrocutadas na rede elétrica, se engalfinhando por causa de uma mísera pipa de cinquenta centavos? Aliás, tinha o tal do maldito cerol que cortava a minha mão às vezes. Garotada, nada de cerol. Todo mundo sabe que motoqueiros acabaram morrendo de maneira absurda com o pescoço cortado por uma linha com cerol. Assim, não custa nada procurarem lugares bem amplos e seguros para empinar pipa sem cerol, certo? Nada contra, desde que seja a quilômetros de distância de mim.
Além dessa balbúrdia na porta, havia ELE... o piolho ruivo. Piolho era como eu chamava carinhosamente cada integrante da molecada
Não adiantavam apelos dos mais dramáticos para que eles maneirassem, pois o piolho ruivo e sua gangue tripudiavam, faziam ainda pior, transformando nossos ouvidos em penico, cada vez adquirindo aparelhos e instrumentos mais potentes. Era dito e feito. Eu estava lá trabalhando, ou tentando descansar num sábado ou domingo e, de repente, ouvia... "Som, som..." Era o bastante para o coração disparar, a pressão subir, a tremedeira percorrer o corpo.
A gente vivia saindo de casa para fugir do inferno quando possível, mas era inevitável chegar e os piolhos ainda estarem lá "tocando" e "cantando" no último volume. Sabem aquele barulho terrível? Esse mesmo. Bem, aguentei alguns anos até que, por vários fatores, acabamos mudando. Meu consolo é que o piolho ruivo, que eu saiba, não gravou nenhum CD até hoje, nem fez o menor sucesso. Não, eu não era vizinha do Simply Red. Garotada, querem ter banda de garagem e tudo mais? Ok, numa boa, mas forrem todas as paredes para o barulho não escapar, ou façam uma vaquinha e aluguem um lugar adequado. O piolho ruivo? Bem, ele mudou de cidade e sua banda se desfez cerca de uns dois meses depois que eu mudei de bairro.
PARTE II
Agora, claro, vamos ao nosso protagonista, Diabinho. Não sei o que era pior, a molecada com as pipas, a bateria ou o Diabinho, porém _ mais um consolo _ um, com certeza, infernizava o outro. Provavelmente, Baranga tomava algum calmante para não ouvir a bateria porque ela largava Diabinho no seu quintal de cinco metros de frente por dois e meio de lado (em vez de colocá-lo no seu imeeeeeenso quintal dos fundos), onde o bicho se esgoelava de tanto latir e ela não fazia nada. Diabinho latia dia e noite na casa ao lado como se estivesse com o diabo no corpo.
Telefonamos (anonimamente, pois Baranga era ignorante e, com ela, "não tinha conversa"), reclamamos dos latidos estridentes e incessantes, falamos das noites de insônia até o despertador tocar às cinco e meia, mentimos alegando doença na família, imploramos... mas nada. Impassível, Baranga ia dormir no seu quarto nos fundos da casa, embalada talvez por seu calmante, e deixava Diabinho se esgoelando no quintalzinho da frente.
No inverno, umas três células minhas quaisquer se compadeciam de Diabinho, espremido no fundo da pequena casinha, trêmulo de frio sob a noite gelada, naquela quintal da frente, e eu torcia para o bicho não contrair uma pneumonia... Mas admito que eu tinha o desejo secreto de que Diabinho desaparecesse. Ele corria desembestado pela rua e sumia por um dia ou dois... mas sempre voltava para casa. A cachorra que pertencia à vizinha da frente, que era um doce de tão meiga e silenciosa, sumiu assim de vez um dia. Mas Diabinho não. Estava sempre firme e forte lá. E a fina que os carros tiravam dele quando corria rua abaixo! As três células até que tinham pena, mas algo malévolo dentro de mim... bem, deu para entender.
Às vezes, pensávamos
Só recomendo que ninguém faça isso. É perigoso para todos os envolvidos. Lá estava eu de madrugada, tentando dormir... e era como se a peste esganiçada estivesse latindo dentro do meu quarto. Então, desesperada, exausta, tive a idéia. Fui até a geladeira e peguei uma bolinha de carne moída congelada do freezer acima. Depois, com o coração disparado, saí na pontinha do pé para o meu quintal, de camisola, me guiando apenas pela iluminação da rua. Meu portão fez um barulho danado, apesar de todo meu cuidado para destrancá-lo. Esperei, sorrateira, a bolinha gelando na minha mão suada, o coração ameaçando sair pela boca. Pensei comigo mesma: "Agora, a peste vai parar de encher de uma vez por todas".
Certificando-me de que ninguém tinha ouvido o barulho do portão, saí para a calçada de fininho e me aproximei do portão da Baranga... Diabinho estava lá... latindo como sempre, mas parou quando me viu. Ele até que gostava de mim, não percebia as minhas "vibes" negativas. No momento em que atirei a bolinha de carne congelada para ele, um garoto passou pela rua deserta. Pensei: "Pronto, agora ferrou!" Mas ou ele não entendeu nada, ou pensou que eu fosse um fantasma de camisolão no meio da madrugada, mas o fato é que não me denunciou mais tarde. Para dizer a verdade, nem vi direito quem era.
Agora, vamos à bolinha de carne congelada...
Em primeiro lugar, quero ressaltar que é uma coisa hedionda envenenar um animal. Jamais façam isso. Os animais não têm culpa da estupidez de alguns donos. Acredito que tudo o que um animal de estimação faz de errado é culpa do dono que não o ensina adequadamente. Outro apelo que faço é que os vizinhos sejam mais cordiais, compreensivos e respeitosos uns com os outros. Ninguém é obrigado a suportar o barulho absurdo do outro. Todo mundo é livre desde que respeite o espaço de seu semelhante. Nosso lar é o nosso reduto, o nosso cantinho para descansar ou até trabalhar, curtir a família, receber nossas visitas; nosso lar é o nosso santuário e como tal deve ser respeitado.
Mas voltando à bolinha de carne congelada... A bolinha de carne não estava envenenada. Não continha nada de errado. Era apenas carne moída que eu guardava no freezer para uso na cozinha.
O meu "raciocínio" naquele instante de tormento foi o seguinte: "Baranga verá a bolinha de carne moída no quintal de manhã e pensará que alguém tentou envenenar Diabinho. Assim, não o deixará mais no quintal da frente, tão exposto e vulnerável. Vai levá-lo para o enorme quintal dos fundos, onde os latidos ficarão abafados e talvez ele resolva nem latir tanto, pois poderá saltitar lá alegremente em todo aquele espaço (ela não queria limpar as necessidades do "diabrete" no quintal enorme)".
E, cá para nós, acho que o bicho passava fome. É, acho que também latia de fome. Na minha ingenuidade, atirei a bolinha congelada para Diabinho no meio da madrugada. O garoto estranho passou direto pela rua, aumentando o meu terror e preocupação.
Diabinho d-e-v-o-r-o-u a bolinha de carne moída em cinco segundos. Não deixou o menor vestígio para a Baranga ver; ela nem soube. E o bicho não pegou nem um resfriado sequer. Ao mesmo tempo apavorada e espumando de raiva, corri para o meu quintal, enquanto o guloso acabava de engolir a bolinha de carne. Nem para engasgar também, não. O portão pesado fez aquele estrondo outra vez. Corri para dentro, tranquei a porta e voltei a me deitar, ainda suando frio.
Diabinho começou a latir forte e alegremente.
Não sei quanto tempo durou a minha angústia geral, mas, pelo jeito, os incomodados é que têm de se mudar, não os que incomodam. Enfim, com a graça de Deus, nos mudamos para o paraíso... não o bairro, mas um lugar bem, bem tranquilo e respeitoso.
E, segundo soubemos, Baranga se mudou para outro estado dois meses depois disso, ao receber uma indenização qualquer que usou para comprar uma casa num condomínio de luxo.
O pobre Diabinho morreu um dia depois da mudança deles para lá, atropelado numa das ruas calmas do condomínio.
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28 DE ABRIL DE 2013
Meu blog completa 2 anos!